domingo, 18 de dezembro de 2016

O mundo que criámos

Por vezes encontramos textos reveladores de que ainda há homens lúcidos, capazes de olhar para o mundo que nos rodeia, que todos construimos, e com um espírito critico reconhecerem as suas virtudes, mas também, sem rodeios, apontarem os seus maiores vícios e vicissitudes. 
No mundo de hoje, cultiva-se um imediatismo bacoco e inútil, a luta argumentativa perfeitamente estéril, explora-se de foma abusiva a emoção humana em detrimento da racionalidade e do conhecimento. Nada (ou muito pouco) é construido de forma duradoura !
O que estamos a fazer ao mundo que nos foi confiado ?
Que legado estamos a deixar aos nossos filhos ? 

O texto que abaixo transcrevo, escrito por António Barreto, descreve "O Mundo que criámos", na prespectiva do autor, que subscrevo em aboluto:
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«O mundo que nós fizemos é fonte inesgotável de amor e decência. De honra e bondade. De beleza e inteligência. Mas também é verdade que a sociedade que criámos, com similares contributos de todas as correntes políticas, exibe abundantes razões de infelicidade e desespero.
Substituímos a liberdade e os direitos individuais pelos direitos colectivos e sociais. Destruímos o ethos(*) do trabalho, em troca da obsessão da competitividade. Habituámo-nos à desigualdade social e ao desemprego crónico. Não denunciamos o racismo dos outros pelo risco de sermos nós apelidados de racistas. Aceitamos a vigilância dos indivíduos pelo Estado. Cultivamos a transparência, mas destruímos a privacidade. Deixamos que a vida cultural obedeça às regras da publicidade e da propaganda.
Fomos brandos perante ideias nefastas. A noção de que a identidade nacional é fantasia reaccionária. A certeza de que a igualdade é fonte de liberdade. A crença de que o sistema democrático gera sempre a liberdade. A convicção de que basta querer para que um pobre e um desempregado deixem de o ser. A certeza contrária: se um pobre e um desempregado são o que são, é por culpa da sociedade.
Criámos uma sociedade de direitos sem mérito, de garantias sem esforço e de privilégios sem valor. Dissemos a todos que podiam aspirar a tudo, à gratuitidade, à assistência, à estabilidade vitalícia, a toda a educação, cultura e ciência e criámos classes médias prontas para tudo, desde que o consumo seja ilimitado e o crédito infinito. Fomentámos a substituição da família pela escola. Demos à política o direito de tudo dominar, a economia, a cultura, a ciência e a moral. 
Dissemos a muitos que podiam aspirar a tudo o que quisessem, que podiam ser imensamente ricos, que a imaginação, a força e o êxito eram os grandes critérios de triunfo, que a especulação era permitida e a ambição festejada! Fizemos ricos, bilionários e proprietários disformes capazes de tudo e convencidos de que podem enganar e esmagar quem contrarie tão ilustres seres. Desprezámos quem ganhou dinheiro, quem quis ganhar dinheiro e quem quis subir na vida. Não soubemos distinguir entre ganhar dinheiro de forma decente e honesta e acumular dinheiro de modo corrupto e desonesto.
Fizemos ou deixámos fazer um Estado monstruoso. Uma carga de impostos desmoralizadora. O despotismo do Estado democrático. A indiferença perante o endividamento. O favorecimento pelo Estado de negócios ilícitos, favoráveis aos amigos. A promiscuidade e a corrupção inevitáveis. A ideia de que o dinheiro não tem pátria, odor ou origem. A transformação do partido político em casta de sacerdotes da democracia. A tolerância perante a corrupção, a mentira e a promiscuidade. 
A substituição de valores de identidade nacional por abstracções internacionais. A intolerância perante os diferentes, os outros e os que não pensam como nós. O mau convívio com as religiões. A ficção democrática da União Europeia e o embuste do défice democrático e dos falsos remédios para o curar. A dependência da Europa parasita dos Estados Unidos em tudo o que respeita à defesa. 
Em nome da competitividade, deixámos destruir empregos estáveis e decentes e aproveitámos as piores condições de trabalho e de vida dos países pobres e das ditaduras. Queixamo-nos da globalização, que gostaríamos de travar, lamentando os desempregados europeus, sem preocupação pelas centenas de milhões de asiáticos que devem à globalização a sua sobrevivência e que deixaram de morrer de fome.
Populistas, nacionalistas, reacionários, comunistas e revolucionários: criámos os espectros que nos ameaçam. Ou deixámos criar.»

Texto de António Barreto, in Diario de Noticias, na 
crónica semanal "Sem Emenda" 

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Nota:
(*) 
Ethos significa o modo de ser, o caráter, o comportamentodo do ser humano (origem da palavra ética).



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